O PACIENTE/CLIENTE/CONSUMIDOR E A MEDICINA BRASILEIRA NO ANO 2000

Dr. Christian Gauderer*


Este livro foi escrito para você, sua família e o profissional de saúde.

O conhecimento dos Direitos do Paciente, ou seja, de seus direitos ou de seus dependentes, é essencial para que você obtenha um melhor atendimento e cuidados médicos. Eles lhe permitem otimizar, tirar o melhor proveito da sua relação com o seu médico ou profissional de saúde, sem nenhum ônus ou custos extras para você. Este livro irá lhe economizar ou poupar tempo, dinheiro, e sobretudo sofrimento humano. Você se tornará mais informado. responsável, consciente e conseqüentemente mais capaz de melhor administrar o que você tem. Você será menos paciente e mais ativo, responsável e participativo.

Aliás, a palavra paciente advém exatamente desta postura obsoleta: onde o indivíduo doente esperava, aguardava pacientemente pela sua recuperação. O enfermo era paciente com o seu mal ou sua doença, enquanto o curandeiro, o pajé, o mágico da tribo, o sacerdote ou o religioso e posteriormente o profissional de saúde lhe recomendavam paciência.

Hoje, felizmente, a magia deu lugar à ciência, a paciência deu espaço à participação ativa, responsável e consciente do indivíduo na administração de sua doença, do seu mal e de sua aflição, seja ela física, emocional ou psicossomática.

Houve pois uma mudança radical, dramática, fundamental na relação do indivíduo com sua doença e seu corpo e esta evolução para melhor advém de progressos que a medicina fez principalmente na segunda metade deste século. Os conhecimentos médicos foram e estão sendo cada vez mais democratizados, tornados públicos e divulgados. Em parte, os meios de comunicação de massa são responsáveis por isso. Os jornais, rádios, televisões, livros e revistas, além de organizações particulares diversas, têm, de maneira séria e sistemática, esclarecido e educado a população sobre problemas de saúde os mais diversos. Não fomos nós, médicos, que demos esse passo no sentido de educar e conscientizar a população. Esta postura nasceu como uma exigência dos pacientes e de seus familiares, a reboque dos movimentos dos direitos humanos, por sua vez uma conseqüência dos movimentos de democratização e igualdade entre os homens.

Nós médicos, por razões diversas, não temos necessariamente uma forte vocação democrática, igualitária ou educacional. Informamos, esclarecemos, educamos o nosso paciente, seus familiares ou a população, quando em regra não temos outra saída ou alternativa. A nossa postura é, por formação e também por força do ofício, autoritária, dogmática, paternalista. Ela está se tornando mais flexível, democrática e de parceria com o paciente/cliente/consumidor e a comunidade, devido exatamente às mudanças e evoluções ocorridas no cidadão e no indivíduo. Estes vêm desenvolvendo a noção e consciência de Direitos, e não só de Deveres. Contribuíram também as mudanças fundamentais e progressos nas áreas médicas, exigindo mais e mais a participação da coletividade, da comunidade e da população para controle e erradicação de doenças diversas.

É pois, na minha opinião, importante que você, eventual ou futuro paciente/cliente/consumidor ou responsável por um, conheça os seus Direitos para poder otimizar a sua relação paciente/médico, uma vez que nós médicos somos lentos em acompanhar essa drástica mudança nas nossas relações com indivíduos doentes e sua família. Exatamente porque fomos e somos lentos em discutir e absorver os Direitos do Paciente, somos conseqüentemente mais morosos ainda em divulgar, educar e conscientizar o paciente, sua família e a comunidade quanto a estes direitos.

Um alerta: estes escritos não visam à polêmica, ao atrito, à animosidade ou à confrontação destrutiva entre pessoas. Eu os fiz com o intuito de gerar o debate, a crítica construtiva, a conscientização e educação mútuas, o crescimento bilateral, tanto do paciente como do médico, com benefício comum e geral de ambas as partes. É um convite à reflexão e ao diálogo bilateral, uma vez que tanto um lado como o outro têm dificuldades, e não são poucas.

Não é fácil ser paciente! A pessoa se sente exposta, agredida fisicamente e emocionalmente, não só pela doença como também pelo profissional de saúde, que apalpa, aperta, injeta, corta, subtrai esperanças, cria restrições ou dita normas. A pessoa doente sente inquietações, angústias, medos, frustrações, inseguranças, inferioridades, incapacidades, raivas ou outras emoções. Onde irá despejar ou colocar essas sensações? Algumas emoções são inclusive socialmente não aceitas, como a raiva de estar doente, raiva de si mesmo ou raiva do médico que fez o diagnóstico. Além de toda a dor física, como lidar com esse turbilhão emocional? Não é fácil ser paciente!

Não é fácil também ser médico! Talvez esta afirmativa surpreenda. O que nós, os profissionais de saúde, mais fazemos? Transmitimos notícias ruins, dolorosas e não-desejadas. Na realidade, o paciente quer, quando procura um médico, ouvir que não tem nada, que está saudável. Quem quer ouvir que a causa de uma simples febre é na realidade uma pneumonia grave ou uma infecção óssea severa? Paciente nenhum quer estar enfermo, tampouco o médico quer lhe transmitir uma notícia dolorosa, ruim ou triste. Sofre o paciente. Sofre também o médico por diagnosticar uma doença e transmitir uma realidade desagradável e essencialmente indesejada. Na realidade, sentimo-nos como profissionais, muitas vezes não como o anjo da anunciação, trazendo notícias boas, mas sim como mensageiros de dor e sofrimento. Sentimo-nos conseqüentemente mal dentro desse nosso papel, mal este que freqüentemente negamos, escamoteando-o das formas as mais diversas. Isso alivia temporariamente o nosso sofrimento enquanto seres humanos, pessoas ou profissionais. Sofremos, e tanto mais, quanto mais sensíveis e exigentes formos. Também quanto maiores forem as nossas cobranças e dos outros sobre nós, maior a nossa dor emocional. Em outras palavras, quanto maior for o nosso envolvimento profissional, maiores o nosso sofrimento, a nossa dor. As conseqüências são bastante óbvias e claras: deprimimos das formas as mais diversas, sendo comuns as fantasias ou gestos suicidas. Só nos Estados Unidos da América, segundo estatísticas oficiais, cem médicos cometem suicídio por ano!

Nós todos conhecemos no mínimo um médico que se matou. É uma pura questão de puxarmos pela memória e termos a coragem de sermos honestos conosco mesmos. Outros comportamentos suicidas, como abuso de drogas, uso de álcool e cigarros são mais freqüentes do que em outras profissões. Conflitos familiares, conjugais ou hierárquicos são também bem mais freqüentes e intensos.

Nós médicos nos sentimos constantemente incapazes, inseguros ou mesmo ignorantes, no real sentido da palavra, frente a uma gama enorme de problemas que nos são trazidos. Essa sensação de inadequacidade é exacerbada pela explosão geométrica de conhecimentos científicos. Conseqüentemente, é difícil e doloroso dizer: "Eu não sei". A nossa reação é de irmos ao extremo oposto, nos tornarmos prepotentes, arrogantes, presunçosos, donos da razão e da verdade, autoritários, paternalistas, exatamente com o intuito de camuflarmos as nossas inseguranças, incertezas e vastas ignorâncias. É claro que isso também acontece com outras pessoas e em outras profissões. É em resumo um simples e primitivo mecanismo de defesa, que precisa ser identificado e reconhecido por nós, profissionais de saúde, para uma melhor administração e manejo de nossas emoções e de nossa vida afetiva. Este fenômeno pode, ou melhor ainda, deve ser identificado pelo paciente para que este possa lidar mais eficientemente e construtivamente com o seu médico. Isso irá ajudá-lo a sair da posição enclausurante de semideus e permitirá ao profissional se mostrar mais humano e real. Esta abertura e transparência emocional aproxima pessoas e faz mitigar sofrimentos. Isso é essencial na relação médico/paciente. O contato, a transparência, a compreensão, o apoio mútuo, o carinho e o respeito pelo sofrimento próprio e do outro aproximam e humanizam o ser humano.

Uma relação interpessoal saudável é, em essência, o respeito e o carinho pelo outro e suas emoções. Esta é, na minha visão pessoal, a nova relação médico/paciente. Uma relação humana, aberta, democrática, flexível, de mutualidade, de respeito e responsabilidades recíprocas. Cresce com isso o médico, que deixa de ser um mito, um semideus, e se torna humano, sem o peso de exigências inviáveis. Cresce com isso o paciente, que passa a ter uma atuação mais direta sobre a sua doença, compartilhando e dividindo responsabilidades. O paciente sai de um papel onde é infantilizado, tutelado, e se torna um indivíduo, cidadão, capaz de julgar e opinar conscientemente. Estabelece-se uma relação democrática, uma divisão de poder, de responsabilidade e de deveres. Esta é também a essência de uma relação democrática e que de repente pode nos parecer estranha e alheia. Não é porém de surpreender. Não tivemos uma tradição, uma vivência ou uma experiência democrática por várias décadas. Isso precisa e pode ser aprendido.

Estas observações citadas aqui devem ser refletidas, amadurecidas e discutidas, pois é assim que se constroem relações democráticas. Não me proponho em nenhum momento a ter razão. Faço minhas palavras do médico Seremus: "Afastem de mim o Demônio da Certeza!"

A democracia não nasce pronta. Relações democráticas necessitam de muito amadurecimento, muito aprendizado, muita discussão, muita reflexão, e sobretudo de muito questionamento. É básico e fundamental o respeito pelo ponto de interrogação, que é a essência do questionamento, e que leva e obriga à pluralidade. As relações democráticas também têm uma outra característica: uma profunda aceitação do erro. É através do erro que se aprende. O erro é que nos faz crescer, nos ensina a ser humildes, a respeitar o outro e as diferenças dele para conosco. É no respeito pelo erro que podemos aprender a respeitar as crianças, pois a base do seu aprendizado implica erros, uma vez que o que mais fazem nesta fase de vida é errar para, através do erro, acertar.

Numa relação democrática, o erro não é errado, e sim algo normal e essencial à condição humana. Ensina a sabedoria popular: "Errar é humano, persistir no erro é burrice". Se não evoluirmos para uma relação democrática, aberta, direta com nosso médico, e ele para conosco, o seu paciente, estaremos ambos andando na contramão da história da medicina. A relação democrática médico/paciente será o padrão do século XXI.


* OS DIREITOS DO PACIENTE. Cidadania na Saúde

DR. CHRISTIAN GAUDERER

Especialista em Pediatria pelo American Board of Pediatrics (Univ. Tennessee)

Especialista em Psiquiatria pelo American Board of Psychiatry (Clínica Mayo)

Especialista em Psiquiatria Infantil e do Adolescente pelo American Board of Child Psychiatry (Univ. Harvard)

Diretor da Equipe Diagnóstica & Terapêutica Gauderer (Rio de Janeiro)

Outros livros do autor:

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Tel. (021) 255-5694 Fax. (021) 549-3381

E-mail: gauderer@montreal.com.br


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